Cultura do povo ou cultura de exceção?
Como advertência, cumpro o dever de informar que aquilo que afirmo aqui é uma opinião pessoal que não deve ser entendida como posicionamento da instituição representada nesse blogue. Além disso, manifesto o meu respeito a todos os colegas profissionais da educação que dedicam seus esforços à celebração do 22 de agosto. Mas não poderia permanecer no silêncio em relação ao tema, embora ninguém tenha pedido meu parecer acerca dele. O texto vai mais como uma justificativa (já que, há anos, me recuso a participar dos festejos do Folclore) do que como artigo de opinião.
Acho que é desnecessário lembrar a etimologia e a história do termo Folclore. Mas, caso alguém tenha dúvidas acerca disso, recomendo a leitura do verbete na wikipedia. Vamos direto ao ponto: folclore é cultura do povo, cultura popular ou, por extensão, a cultura que não necessita de academia, teoria (ou qualquer coisa do gênero) para se sustentar.
Eu sou adepto dessa cultura: não como admirador, não como expectador, mas como quem a vive das formas mais profundas possíveis. Essa cultura não faz parte de minha vida. Ela é a minha vida. Minha vida social, religiosa, ancestral, familiar etc.
Quando digo que não comemoro o folclore, não quero dizer que a escola não deva dar espaço para essas manifestações. Muito pelo contrário: acho que a escola deveria se abrir às manifestações culturais populares, não como uma concessão, homenagem ou favor. A escola deveria, de fato, reconhecer o valor que a cultura popular tem para a nossa identidade como povo. E isso é mais importante, do ponto de vista existencial, que qualquer disciplina que ela possa ensinar.
Em outras palavras, para a nossa existência enquanto povo nordestino, baiano, maracaense, para a nossa existência enquanto escola situada às margens de uma comunidade vítima de estereótipos e preconceitos de toda sorte, para nosso Ser em si, Dona Fia, que trabalhou nesta instituição por anos e que mora logo ali na esquina, tem muito mais a nos ensinar que Camões, Einstein, Pitágoras, Lavoisier, Heródoto, Sócrates, Marx (todos juntos).
Dona Fia sabe de coisa que a escola nunca ensinou e talvez nunca tenha capacidade para ensinar. E também não é o seu papel. A escola tem o papel muito claro de ensinar a cultura erudita, esta que é oposta (fique claro, por razões ideológicas e não estéticas) ao chamado folclore.
Mas de que adianta chamar Dona Fia, o cantador de Reis, o mestre de capoeira, o artesão e a rezadeira para falar aos estudantes no dia do folclore? Alivia a nossa consciência? Não a minha. Continua ainda pesada pelo péssimo favor que faço à minha tradição nos outros 364 dias do ano. Há quem diga que moda de viola é folclore (cultura popular), mas Ludwig van Beethoven é cultura (só cultura). O clássico, o erudito, é cultura e ponto. O popular é uma subclasse da cultura, uma categoria da cultura que tem um dia do ano para receber a migalha de nossa atenção. Pergunte ao professor Emanuel Velame se ele concorda com essa classificação excludente, sectária e elitista. E mais: Beethoven não é povo? Por que não é povo? O que é povo? O que confere a Beethoven (e não a Inezita Barroso) o caráter universal?
No dia do folclore, muitas escolas chamam o pai de santo para cantar algumas músicas de seu terreiro. É claro que muitos aceitam o convite, cheios de orgulho. Mas será que eles tem consciência de que a escola tem colocado sua religião numa subcategoria da cultura, negando-lhe o caráter de religião em si?
Há por aí cartazes com desenhos de índios com seus penachos. É a isso que meus ancestrais estão reduzidos? Não bastou quase dizimá-los, descaracterizar a sua religião, os seus modos, roubarem suas terras... agora meus ancestrais estão na mesma categoria do saci-pererê e da mula-sem-cabeça? Vamos ficcionalizar a sua existência? Pior: vamos dizer que é uma ficção de subcultura (cultura do povo e não da elite)?
Penso que a cultura popular deve estar na escola. Não como um favor. Não como uma concessão. Não como uma representação macaqueada de nossas verdadeiras raízes. A cultura deve estar na escola todo dia, demonstrada nos nossos costumes, nossas atitudes diárias, nossos debates. Não estou dizendo que a instituição deva abandonar os seus conteúdos formais e oficiais para ensinar a cultura popular. Basta que não estejamos cumprindo o nefasto papel de assassino de nossa história. Não é necessário substituir uma coisa pela outra. Apenas colocá-las em pé de igualdade (pelo menos do ponto de vista da importância que damos a elas).
Quando a escola estiver assim, aberta, dedicarei um tempo específico para o 22 de agosto. Mas, enquanto essa data for uma ocasião para dar migalhas à nossa cultura popular; enquanto for uma oportunidade para segregar o saber local, ancestral e histórico entre as coisas mentirosas e ultrapassadas, passarei este dia calado.
2 comentários:
Texto maravilhoso, reflexivo, digno de quem deseja formação e transformação.
Tirou as palavras de minha boca... (risos).
Belo texto!
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